Por Renildo Rodrigues
Quando eu passei a levar o cinema realmente a sério, em 2004, me deparei com uma questão incômoda: por onde eu começo? Como fazer um estudo mais aprofundado dos filmes, por quais nomes, quais conceitos? Esse é um ponto perigoso. Muitas teorias esdrúxulas já foram esboçadas na tentativa de “dignificar” a Sétima Arte, como se ela precisasse. Mas tudo se resolveu quando encontrei um Nome.
Antonio Moniz Vianna não é um cineasta. Nem ator. Nem sequer teve passagem pelo cinema. Ele é um crítico. E brasileiro. Dar ênfase a essas duas palavras pode sugerir um desqualificativo infeliz, de que seria melhor se ele fosse um diretor ou ator do que um crítico, e americano ou francês do que brasileiro. Nada disso. Elas na verdade atestam o talento extraordinário de Moniz Vianna para ampliar o repertório cultural de seu leitor, e o inusitado disso se dar num país cuja tradição, cinematográfica ou de crítica, nunca teve a menor consistência.
Com 27 anos de atividade crítica diária (!) no jornal carioca Correio da Manhã, Moniz, nascido em Salvador em 1924, dissecou a produção americana e europeia do período mais importante do cinema, entre as décadas de 1930 e 70. Médico por formação, jornalista pelas circunstâncias, Moniz, dotado de um poderoso background cultural, praticamente inventou o ofício no Brasil, na década de 40. Aliás, bem antes da Cahiers du Cinema e de seus antípodas americanos, Moniz já detectava no cinema os elementos de seu diferencial artístico, e exaltou diretores que depois seriam erigidos em heróis do cinema de auteur, como Alfred Hitchcock, Frank Capra e John Ford.
Foi Ford quem, ao longo da carreira do crítico, teve melhor juízo entre os colegas. Foi ao diretor americano, conhecido sobretudo por seus westerns (Rastros de Ódio, No Tempo das Diligências, O Homem que Matou o Facínora) que Moniz devotou a maior parcela de sua admiração, expressa nas resenhas entusiásticas de muitos de seus filmes. E foi também a ele que, nos idos de 1973, Moniz dedicou seu último artigo, o emocionante Ford, o primeiro. Contudo, não faltaram palavras elogiosas a quem, na visão de Moniz, era justo concedê-las: Fellini, Hawks, Welles, Kubrick, Kurosawa, Bergman. E ainda a Lima Barreto (O Cangaceiro) e Glauber Rocha (pelo menos em Deus e o Diabo na Terra do Sol). Mas o crítico era exigente e ferino – é muito mais comum vê-lo desancar a mediocridade circundante, e mesmo os cineastas que admirava não escaparam do seu rigor.
Além do trabalho pioneiro como crítico, foi graças a Moniz Vianna que diversos profissionais do cinema e da imprensa deram o start em suas carreiras. Foi por inspiração dos artigos de Moniz, por exemplo, que Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas) e Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha) se alistaram na tropa de técnicos que acompanharia Orson Welles quando este veio ao Brasil rodar It’s All True (nunca concluído). Veteranos como Lima Barreto dividiam espaço com a garotada do cinema novo – Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e o já citado Glauber – no apartamento do crítico em Copacabana (Rio de Janeiro), e se punham a promover animadas discussões sobre cinema. No Correio da Manhã, nomes como Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Sérgio Augusto e Ruy Castro fizeram alguns dos seus primeiros trabalhos a convite de Moniz.
Esse projeto de educação de leitores e cineastas chegou ao auge na década de 1960, quando Moniz organizou grandes retrospectivas dos cinemas americano, russo, italiano, francês e inglês, com uma programação que incluía desde clássicos do cinema mudo até as novidades mais recentes, e resgatando obras há muito fora de circuito no Brasil (muita gente pôde ver Cidadão Kane pela primeira vez na retrospectiva de Moniz, por exemplo). Além disso, também é dele a iniciativa do Festival Internacional do Filme, realizado no Rio de Janeiro em duas edições (1965 e 69), e que trouxe pra cá gente como Fritz Lang, Roman Polanski e Claudia Cardinale.
Infelizmente, com o golpe militar e o AI-5, o jornal carioca acabaria sendo massacrado, declarando falência no ano de 1974. Essa perda, somada à morte do ídolo John Ford, afastaria Moniz da crítica e do jornalismo pelo resto da vida. Mas não do cinema: com cópias dos seus filmes mais queridos, o grande crítico continuou a promover sessões ao lado dos amigos e familiares. Seu neto, Eduardo Moniz Vianna, herdou a paixão pela Sétima Arte do avô, e hoje se dedica a levar adiante a proposta de uma crítica inteligente e objetiva, mas que não dispensa a verve, nem disfarça o entusiasmo por seu objeto de estudo. É essa lição que deveria animar a todos que, como nós aqui do Set Ufam, se dedicam a levar o cinema ao público através de palavras.
Antonio Moniz Vianna (1924-2009)
P.S.: Por enquanto, a única edição disponível dos escritos de Antonio Moniz Vianna é a coletânea Um Filme por Dia, organizada por Ruy Castro e editada em 2004 pela Companhia das Letras. É fácil de achar nas livrarias de Manaus, e sai pelo preço médio de R$ 45. No endereço http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11902, é possível ler o belo ensaio de Castro que abre o volume, assim como a resenha de Moniz para Rashomon, de Akira Kurosawa. Não deixe de verter um pouco da sabedoria daquele que é o maior entre os críticos de cinema – do Brasil e do mundo.
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