quarta-feira, 6 de junho de 2012

Verdades, mentiras, imitações e lágrimas verdadeiras

Por Diego Bauer

Há duas semanas viajei para Autazes por conta do meu trabalho. Gostei da cidade. É charmosa, possui boas histórias e um povo muito simpático e hospitaleiro. Por conta da cheia, trechos da BR-319 estão intrafegáveis, e por isso, fomos e voltamos de barco.

Como tinha que decorar uns textos que teria que falar diante das câmeras, fui as três horas de viagem estudando o roteiro do programa.

Voltamos a Manaus dois dias depois, com a viagem marcada para as quatro e pouco da manhã. Como todo o trabalho havia terminado, resolvi relaxar durante o caminho de volta, e fui recompensado. Lá para as cinco e meia da manhã, o nascer do sol trouxe uma paisagem espetacular, daquelas que parecem um papel de parede.

Um verdadeiro espetáculo, algo inspirador.

 
Com um cenário desses, minha sensibilidade foi tocada, e senti vontade de apreciar uma obra de arte. Dei uma procurada no computador, e lá encontrei Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho.

Lembro-me que já havia assistido esse trabalho há alguns anos, que havia gostado, mas que o achava, de certa forma, superestimado pela crítica, que o elogiou muito, classificando-o como um dos melhores trabalhos do cinema brasileiro pós-retomada!

Depois de assisti-lo mais uma vez, mudei completamente a minha opinião, e me rendi à sensibilidade e ao poder desse documentário, que mescla a linguagem documental com ficção, fazendo experimentações em cima do fazer de cada linguagem.

 
Tudo tem início quando a equipe do documentário põe um anúncio no jornal para que mulheres viessem até eles, e contassem as suas histórias de vida. Das 83 que compareceram, algumas foram selecionadas para estarem no documentário.

Após isso, Coutinho chamou algumas atrizes para interpretarem as histórias dessas mulheres, só que no mesmo parâmetro das personagens verdadeiras, ou seja, através de depoimentos.

Quando vemos uma mulher dando um depoimento, e logo depois vemos a atriz Andréa Beltrão, praticamente dando sequência ao que a mulher anterior falava, logo de cara percebemos a proposta de Coutinho, e aquilo começa a se apresentar como sendo um exercício teatral.

 
Além dela, atrizes famosas como Marília Pêra e Fernanda Torres também fazem parte do trabalho. Só que as outras atrizes que fazem parte do documentário não são conhecidas, o que faz com que não saibamos de quem é a história, quem fala a verdade e quem está interpretando.

Isso fica bem claro durante um depoimento de uma mulher que conta um episódio ocorrido com o seu filho de 19 anos. Depois de um tempo, vemos uma outra mulher contando a mesma história, e a dúvida se instaura. Essa é a segunda vez que vejo o documentário, e ainda não consigo afirmar com certeza quem é a atriz e quem é a personagem real.

 
E também somos traídos regularmente. Quando achamos que estabelecemos uma relação de segurança com a mulher que nos conta a sua história, Coutinho vem e acaba com tudo. A maior “traição” do filme tem relação com a história contada pela mulher que teve um caso com um rapaz que trabalha na empresa de ônibus, com ela deu uma “trepadinha de galo”. Não vou dizer o que acontece pra não passar spoiler pra você, mas é algo surpreendente, e de certa forma “irritante” também.

Depois de divagar durante bastante tempo (uma sensação maravilhosa, que apenas grandes obras de arte conseguem fazer, e quem já se sentiu assim, sabe do que estou falando), chego a conclusão de que esse questionamento é apenas um dos pontos tocados pelo trabalho, que além de questionar o que é ou não real, traz histórias emocionantes, assim como também são as suas interpretações.

Pode parecer exagero, mas me emocionei diversas vezes durante o documentário, mesmo já tendo visto exatamente a mesma história tendo sido contada minutos atrás. O que é dito tem tanta força, e é tão verdadeiro, mesmo quando interpretado, que é impossível não se ver mergulhado na vida daquelas mulheres.

 
Os trabalhos de Andrea Beltrão e Marília Pêra são dignos de seus nomes. Buscando carregar as cargas dramáticas de suas personagens, mas sem imitá-las, as duas comovem, e passam tanta verdade, que parece que esquecemos que acabamos de ver aquela mesma história sendo contada antes, e que aquilo não se trata de algo “real”.

Algo que é nítido no trabalho das duas é uma tentativa de contar as histórias de uma maneira contida, sem teatralidade, fazendo de uma forma que não pareça uma interpretação, e o mais marcante de tudo: tentando evitar o choro. A própria Marília faz uma constatação fantástica quando diz em certo momento: “Quando o choro é verdadeiro, doloroso, a pessoa normal sempre tenta esconder, ainda mais na frente de uma câmera.
Já os atores, principalmente os da tela, tentam mostrar a lágrima. Elas são sempre bem vindas, todos desejam as lágrimas”.

 
Mas o ponto mais interessante é quando vamos ver o depoimento de Fernanda Torres. Fica nítido que a atriz decidiu fazer uma interpretação mais parecida possível com a da moça, chegando a imitá-la em certas situações. Só que chega um momento que ela trava! Se sente envergonhada por se sentir uma mentirosa diante da câmera, e se desculpa para Coutinho.

Após isso, vemos depoimentos da mulher que ela está interpretando. Torres volta e começa a falar da personalidade da personagem, que possui uma história trágica, mas sempre conta mostrando um sorriso (que não é nem um pouco engraçado, só faz com que achemos a sua história mais triste).

Enfim, depois da constatação da atriz sobre a personalidade da personagem, são exibidos outros depoimentos. Quando o foco volta para Fernanda, vemos que ela conta sobre como descobriu que ficou grávida aos 18 anos, e vemos o seu sorriso constante, mesmo contando algo extremamente sério, o episódio mais marcante da sua vida (no caso, a da sua personagem). E mesmo depois de termos visto todo o processo, e as dificuldades da atriz em fazer o que foi proposto, nos sentimos mais uma vez sugados pela história que está sendo contada.

 
Outro destaque que eu preciso falar é a montagem do documentário. Inteligente, sabe o momento certo de passar a informação necessária, misturando corretamente os depoimentos contados, sem causar perda de ritmo.

Percebe a grandiosidade dessa obra? O que seria um simples exercício, em que atrizes interpretariam histórias de mulheres reais, se torna algo muito maior, questionador, rico em nuances, e que nos emociona (e como!). Recuso-me a tentar racionalizar o que vi, dividindo o que é real do que é interpretado. A atuação das atrizes me emocionou tanto quanto os depoimentos verdadeiros. E como se pode dizer que o que aquelas atrizes viveram não foi verdadeiro?

Com o sol já bem esparramado no céu sobre o rio, cheguei ao porto do Ceasa maravilhado com o que acabara de (re)ver. Senti-me muito feliz por ter mudado de opinião, e ainda fiquei um tempinho no barco.

 
Pensando na vida.

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