terça-feira, 14 de junho de 2011

Cult Movies – Moça com Brinco de Pérola (2003)

Por Emanuelle Canavarro

 
Nem todos são capazes de sentir com singeleza e perspicácia, a importância do trabalho que é desenvolvido na produção de um filme, pelos técnicos e especialistas que assinam a música, os figurinos, os efeitos sonoros e especiais, os cenários, a edição e a imprescindível fotografia. Mas eis que surge um inegável fato, é quase impossível não perceber a harmônica sincronia entre todos esses detalhes elementares, em Moça com Brinco de Pérola. O filme foi adaptado pela roteirista Olivia Hetreed, do best-seller de Tracy Chevalier – um romance de grande sucesso, que permaneceu 50 semanas na lista dos dez maiores best-sellers do New York Time Book Review, em 1998. Instigado pela ‘festa editorial’, Peter Webber – que antes era diretor de filmes para a TV – resolveu adaptar o livro para as telonas e dar início a sua carreira cinematográfica, em grande estilo.

A pintura ‘Moça com Brinco de Pérola’, do holandês Johannes Vermeer, é uma das mais famosas da história e conhecida, pelos críticos do universo artístico, como a Monalisa holandesa – que a exemplo da obra italiana, muito se especula sobre a modelo que possivelmente teria posado para o pintor, embora não existam sequer registros relativos à sua origem. Vermeer viveu em Delft, entre os anos de 1632 e 1675, e talvez tenha tido uma realidade bem mais melancólica que a projetada no cinema. O mal dos artistas, naquela época, era morrer pobre e de forma, no mínimo, trágica. Apesar de brilhante, o artista aqui referido parece não ter fugido a essa indispensável regra. Depois de sua morte, foi esquecido e só voltou a ter algum reconhecimento por volta 1866, quando seus quadros passaram a ser admirados pelo brilhante uso da luz, por composições inteligentes e transparência de cores.

Raríssimos filmes alcançam a sensibilidade do processo criativo de um artista, mas este longa consegue ser um verdadeiro deleite a todos os nossos sentidos. Scarlett Johansson interpreta Griet, uma jovem camponesa que, por conta das dificuldades financeiras enfrentadas por sua família, é levada a trabalhar na casa do prestigiado Vermeer – vivido por Colin Firth. Dentre suas inúmeras funções, está a de limpar e arrumar o estúdio, onde o artista passa a maior parte de seu tempo, trabalhando e refugiando-se de sua caótica família e de sua inquietante penca de filhos. 

Vermeer parece se conformar com o fato de estar cercado por pessoas leigas, que não compreendem o que ele faz, mas consegue manter seu mundo separadamente e estabelecer um aparente equilíbrio. Aos poucos, o pintor começa a prestar atenção no aguçado faro artístico da jovem, de apenas 17 anos, e passa a treiná-la no preparo de suas tintas e composições. E assim, surge um misterioso elo entre os dois, mais forte que a imensa barreira de classes e idades. Scarlett é capaz de observar os materiais com o mesmo olhar pueril com que descobre a Tóquio de "Encontros e Desencontros" (Lost in Translation, de Sofia Coppola, 2003).

Ao admirar as nuvens e perceber que elas não são só brancas, mas também cinzas, azuis amarelas, e com intensidades e tonalidades diversas, Griet começa a reconhecer dentro si uma forte sensibilidade ao mundo da arte. A justificar a luz e a sombra como tema preferido de Vermeer, a própria direção de arte e a excelente fotografia de Eduardo Serra transportam o jogo para a tela, transformando o filme em algo similar às pinturas do artista. Algo capaz de nos levar a um verdadeiro mergulho no Belo, em meio a tons de pinturas barrocas e uma atmosfera sublime mesclando sensualidade e inspirações, enquanto a trilha sonora, criada por Alexandre Desplat, recobre os momentos mais dramáticos com um apuro fascinante.

Vermeer pinta sob encomenda, isto é: quando Pieter Van Ruijven (Tom Wilkinson) pede algo, nosso artista simplesmente o faz, ou melhor, ele o pinta sem dar palpites – já que se trata do seu melhor cliente e quem mais o ajuda a conseguir o ‘pão de cada dia’. Encantado com a beleza puritana de Griet, Pieter disse que queria uma pintura da jovem criada. Depois de muito hesitar e quase que obrigado por sua autoritária sogra, Maria Thins (Judy Partiff), a aceitar o trabalho (tudo escondido de sua ciumenta e arrogante mulher, Catharina – Essie Davis), Vermeer resolve dar início à produção. Quando a obra está quase pronta, o artista sente que falta alguma coisa, e neste momento nos deparamos com o ponto alto do filme: ele fura a orelha de Griet e lhe coloca um brinco de pérola, de sua mulher (a fúria de Catharina ao ver o quadro, indubitavelmente vale o filme inteiro). A comparação imposta pelo diretor, do quadro pintado - tendo a Scarlett como modelo, e a cena final com o quadro original do Vermeer, é algo extasiante.

Ao longo do filme, podemos constatar uma forte carga de emoções contidas e não expressadas pelos seus personagens. O que, por mais incrível que possa parecer, não faz falta. Griet e Vermeer, definitivamente, não precisam realizar algum ato explícito para sabermos o que se passa em suas mentes e o que realmente estão sentindo um pelo outro. Inclusive, devo ressaltar que é um filme de pouquíssimas palavras (e ainda me arrisco: continuaria sendo o mesmo primor, ainda que com a ausência completa de diálogos). 

Scarlett Johansson está perfeita no papel, acredito que outra atriz não poderia ser tão compatível, tanto com a estética da obra de arte, quanto com o teor dramático da personagem. Ela tem uma semelhança incrível com a moça da pintura! Colin Firth também está impecável, fazendo aqui um dos melhores trabalhos de sua carreira (perdendo apenas para atuação em O Discurso do Rei). A química entre os dois atores é algo extraordinário. Palavras não se fazem necessárias, enquanto gestos e olhares são suficientes, o bastante, para demonstrar toda a fantástica carga emocional que os envolve.

O filme teve 3 indicações ao Oscar – Fotografia, Direção de Arte e Figurino; 2 indicações ao Globo de Ouro e incríveis 10 indicações ao Bafta. Creio que o grande mérito do filme foi não carregar nas tintas do romance e diluir, sutil e delicadamente, ao longo de curtos 106 minutos, conceitos de luz, cor e composição. Se eu pudesse modificar uma única coisa, seria o tempo de duração do filme. Fiquei com um megalomaníaco gostinho de ‘quero mais’.

 Nota: 10,0

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