sábado, 17 de março de 2012

Crítica: "Histórias Cruzadas", por Tate Taylor

Por Emanuelle Canavarro


Era 24 de dezembro de 2010, véspera de Natal, quando comecei a ler “A Resposta” – o romance de estreia de Kathryn Stockett, com mais de 3 milhões de cópias vendidas, que ganhou os encantos da telona e as colossais indicações à estatueta. Confesso que levei alguns longos capítulos até conseguir abstrair o significado dessa tal de “resposta”.

Claro, que já desconfiando de um possível equívoco na tradução, consultei o meu amicíssimo Google para descobrir o verdadeiro nome do livro: “The Help” (que, por sinal, oferece um perfeito vislumbre sobre a trama). E para a minha não surpresa, o filme acabou chegando ao Brasil com um título ainda mais desnecessário – “Histórias Cruzadas” (francamente, ele me faz lembrar os movimentos militares de inspiração cristã na Idade Média!).


Morro de curiosidade para saber os critérios que os nossos ‘gênios criativos’ utilizam, no momento de realizarem suas traduções para o português – é cada pérola que sai, né? Mas, isso é conversa para um próximo post, vamos nos centrar nessa comovente história que tem suspiros e lágrimas garantidos (em contraste com boas gargalhadas).

A história se passa na ultraconservadora (leia-se: cruel e racista) Jackson, no Mississippi, em meandros da década de 60 – época em que os EUA eram palco de tortuosos conflitos entre militares dos direitos civis e partidários da segregação racial. A atmosfera nos envolve no romantismo de “...E o Vento Levou”.
Brincadeira.

Mas a carga histórica tem suas raízes fundamentadas no clássico, ainda que explorada em ângulos distintos – afinal, o que vemos aqui é um furto de divergências oriundas da Guerra de Sucessão, uma rivalidade entre os estados do sul e do norte que se inflama devido à forma como a questão racial é abordada por ambos.

Então, digamos que a população do sul, cujos antepassados lutaram para defender a escravidão, seja mais preconceituosa e radical do que a dos estados do norte. Isso explica a burrice ilimitada que afogava a sociedade de Jackson.

Com uma dose extra de humor, mas sem perder o equilíbrio com o drama, a história gira em torno de três mulheres que estão prestes a dar uma liberdade de expressão nunca vista ao movimento pelos direitos dos negros.

Nossas heroínas são: Skeeter Phelan (Emma Stone), jovem branca e da alta sociedade sulista, que acabou de graduar-se em jornalismo e retornar à casa dos pais; Aibileen (Viola Davis) e Minny (Octavia Spencer), empregadas negras que, dia após dia, são submetidas a humilhações revoltantes por parte das famílias brancas para quem trabalham.

Recém formada, disposta a seguir uma carreira jornalística e, acima de tudo, ser independente – ao contrário das demais jovens de sua idade, que estão casadas, com uma penca de filhos, ou à caça de um marido rico e um anel de brilhantes para pôr no dedo – Skeeter decide dar voz às “mulheres de cor” sufocadas pelos limites e regras pungentes que norteavam o mundinho da elite caucasiana, naquela época.

O projeto clandestino é a elaboração de um livro. Muito simples, certo? Errado. Esse era um tipo de colaboração considerada ilegal sob a legislação do Estado, um desafio às convenções sociais vigentes.


O tema pode parecer uma releitura de outros tantos abordados em produções antigas, como em “Mississipi em Chamas” (de Alan Parker, 1988) e “Fantasmas do Passado” (de Rob Reiner, 1996). Mas, não se engane, a diferença e o ineditismo estão justamente no seu enfoque: o ponto de vista das negras domésticas, que cuidavam dos filhos de suas patroas com todo o amor e carinho (afetos negligenciados pelas madames), mas que eram proibidas, por exemplo, de usarem o mesmo banheiro – “para não contaminarem os brancos com as doenças típicas dos negros”, como defende a socialite, vingativa e insuportável, Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard) para as suas amigas do mesquinho “clube de bridge”.


Dirigido e roteirizado por Tate Taylor, que ainda está dando seus primeiros passos como diretor, “Histórias Cruzadas” foi indicado a quatro merecidos Oscars: Melhor Filme, Melhor Atriz (Viola Davis) e duas indicações para Melhor Atriz Coadjuvante (Jessica Chastain e Octavia Spencer). Sempre com o sofrimento de toda a sua longa existência estampado na face, é impossível não se comover com a dor que Aibileen carrega.


Enquanto isso, Chastain mostra-se bastante à vontade no papel da ingênua e desmiolada Celia Foote (ok, não esqueçamos os traços piriguetes). Quanto à Spencer, podemos dizer que o seu humor é responsável pelas cenas mais hilariantes do filme e não falha na missão de arrancar boas risadas da plateia, ainda mais quando sua “especial torta de chocolate” entra em cena – não foi à toa, que a atriz recebeu o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante.

Mesmo com todos os conflitos existentes na época, a direção de arte de Curt Beech não hesita em doar uma estética colorida à trama e aposta em cenários simples mas, ao mesmo tempo, dotados de significâncias, com o auxílio do flutuante diretor de fotografia Stephen Goldblatt. Em harmonia, a trilha sonora de Thomas Newman atende de forma eficiente aos desejos do diretor – simplesmente divertida quando é o caso ou de extrema sensibilidade quando se faz necessária.


Ao pensar em toda a carga histórica, eis que surge o único pecado do filme: a superficialidade na abordagem de um assunto tão complexo. Temáticas importantíssimas são dispostas de maneira efêmera, em passagens que poderiam ser valorizadas e exploradas com mais afinco – como a Ku Klux Klan, o fim da era Kennedy, o heroísmo de Martin Luther King, os panteras negras ou a revolução feminista – porém, algo peculiar a uma produção da Disney.

De fato, “Histórias Cruzadas” está longe de funcionar como uma espécie de registro de um dos períodos mais intensos pelo qual passou a sociedade norte-americana. Na melhor das hipóteses, ele pode ser considerado um conto moral disfarçado de entretenimento. O próprio livro, apesar de não ser tão contextualizado e ganhar inspiração numa performance agridoce, trata a questão racial de forma mais profunda.

Tate Taylor esteve muito bem, a julgar por sua inexperiência, e acertou em cheio no seu objetivo de entregar um feel good movie quase perfeito – instigando lágrimas e o mais importante: sem deprimir. As falhas podem marcar uma singela presença na narrativa, mas a vertente técnica/visual é impecável.

Por esses e outros fatores, o filme chegou ao primeiro lugar nas bilheterias dos EUA e permaneceu por três semanas seguidas (o que não acontecia desde “A Origem”, de Christopher Nolan – 2010), superando os milionários blockbusters da vez. O filme, definitivamente, soube encantar com honestidade.

Infelizmente, a realidade mostrada continua assombrando os nossos dias. E não apenas no Sul dos Estados Unidos, mas em tantas outras partes, e transvestido de formas muito diversas.

O ator americano Morgan Freeman – vencedor do Oscar em 2005, por “Menina de Ouro” (Clint Eastwood) – reconhecido ativista contra a discriminação racial, disse à AFP: “o racismo continua vivo neste país” e lembra que na cidade onde vive, Charleston, "ainda agora, as crianças brancas e negras não estavam autorizadas a se juntar". Eis um lugar onde o passado sombrio nunca morre.

 
NOTA: 9,0

P.S.: Para quem leu “A Resposta”, o filme tem a capacidade de se tornar muito mais belo do que realmente é. Então, se você não gostou do longa, saiba que você corre o sério risco de mudar de opinião depois de ‘devorar’ este romance. Como eu já sabia de todo o enredo, as cenas findaram se encaixando com a mais perfeita das perfeições. Mas confesso que se eu não o tivesse lido, as probabilidades de ter detestado “Histórias Cruzadas” eram altas. 146min de filme não foram suficientes para mostrar tudo o que as, quase, 600 páginas do best-seller tinham a dizer.

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