No Livro de Jó, no Antigo Testamento, há um questionamento: "Será que Deus é sádico?". Me abstenho dessa discussão. Mas posso garantir que os irmãos Ethan e Joel Coen o são e, com a mesma intensidade, nos fazem rir e pensar enquanto lançam desgraças nas vidas de suas crias.
O escolhido do momento para sofrer é o professor de Física Larry Gopnik.
Em Um Homem Sério eles adaptam essa passagem bíblica, onde o próspero Jó cai em ruína e, assim, tem provada a sua fé em Deus, para os anos 60 na comunidade judaica de Minnesota, onde Bob Dylan e os próprios Coen nasceram e cresceram. O texto bíblico tem um happy ending; Jó vence o seu desafio e aprende uma lição depois da sua jornada heroica. No seu mais recente filme, os ganhadores do Oscar 2008 com "Onde Os Fracos Não Tem Vez" oportunamente se esquecem dessa moral e ficam só com a desgraça mesmo. E isso é ótimo.
Larry passa por um momento difícil e reage a ele com a mais completa impotência. Faz um exame no estômago que indica uma doença, talvez úlcera, numa plausível referência a Jó. Na universidade tem que aturar um estudante coreano querendo suborná-lo. Em casa, a sua esposa quer separação e mantém abertamente um caso com o amante. Fora isso, tem de aturar a excentricidade do irmão que se mudou para o seu lar, os golpes dos filhos e a rispidez dos vizinhos. As desgraças chegam a Larry sem deixá-lo respirar, muito menos lhe dando tempo para, com a sua lógica matemática, refletir sobre as causas e consequências delas. Nem a sabedoria dos rabinos, isso quando eles se dispõem a ouvi-lo, lhe indica caminhos.
Seria coerente afirmar que não há um objetivo no roteiro do filme. Larry, interpretado por Michael Stuhlbarg, aceita passivamente todas as coisas ruins, e só. E o bar mitzvah do seu filho, onde os Coen nos enganam, fazendo-nos supor que aí seria o clímax da história, é apenas um momento para ele pensar que os reveses lhe esqueceram por hora, o que burlescamente se mostra uma inverdade.
Ao contrário do cinemão que nos acostumamos a ver e a apreciar, e mais próximo do que acontece na vida, Um Homem Sério mais lança perguntas do que propõe respostas, abdica dos finais moralistas, ignora a noção de causalidade e, dependendo do ponto de vista, pode ser considerado ou um drama ou uma comédia de ironia ímpar. Ironia essa vinda da tradição judaica, onde o riso esconde sabedoria e ceticismo. Os Coen, nesse ponto, se assemelham menos a Woody Allen, que tira as suas piadas mais dos diálogos, que - meus amigos, mais uma vez, me desculpem pelo proselitismo - Franz Kafka, onde o absurdo e a autopiada dão o tom.
Falando em judaísmo, as referências frequentes a esta cultura pouco dificultam o entendimento dos conflitos de Larry. Claro que facilita saber o que faz um rabino, mas o significado de vários termos é, pelo menos, intuído graças ao contexto em que aparecem.
Um Homem Sério concorre nas categorias Melhor Filme e Melhor Roteiro Original do Oscar deste ano. Acredito que as chances dele ganhar qualquer prêmio são baixas, devido ao peso político (Guerra ao Terror) e econômico (Avatar) da concorrência. Isso, claro, tira nada do mérito da história e da sua capacidade de entreter - expandida contanto que você pense bastante depois de sair do cinema.
A título de curiosidade, Simon Helberg, o Howard de The Big Bang Theory, interpreta o rabino júnior Scott Ginzler.
Nota: 8
César Nogueira - produtor de SET UFAM
Como escrevi, não vi todos os indicados, mas dentre os que vi, a maioria, este é o melhor. Acho que a ideia do filme vai bem além dos mitos religiosos - há pequenos detalhes que podiam fazer diferença, como por exemplo o momento no telefone em que o protagonista recusa receber o disco de Abraxas Santana. A palavra "abraxas" significa deus. É ele negando deus. Acho que o filme todo se resume àquela simples frase que o coreano fala para ele:
ResponderExcluir"Aceite o mistério."
A partir do momento em que todas as religiões tentam dar conta do tal mistério, nada melhor do que usar uma delas como argumento.
Abs!
Muito obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirPoxa, o significado da palavra abraxas me fez enxergar outros e mais outros significados no filme.
Ontem na MTV o Borbs do Judão falou algo interessante: "Os filmes dos Coen ou você ama, ou você odeia, ou você não entende nada".
César Nogueira
Simplesmente um dos melhores do ano e, sem dúvida, o mais engraçado. A amior injustiça do Oscar esse ano foi não ter dado uma indicação a Michael Stuhlbarg. O timing cômico perfeito do ator aliado à sua capacidade de ilustar o crescente desespero e inevitável colapso nervoso do personagem, garantem a melhor atuação masculina do ano até agora. Ainda não pude conferir Colin Firth e Jeff Bridges (os dois próvaveis ganhadores do Oscar de Melhor Ator), mas Michael está infinitamente melhor do que George Clooney, Morgan Freeman e Jeremy Renner, os quais, apesar de competentes, não mereciam a indicação que receberam, na minha opinião.
ResponderExcluirNota: 8,2/10
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, André.
ResponderExcluirTambém gostei muito da atuação de Stuhlbarg. Associei o trabalho dele com a figura do judeu neurótico, lapidado pelo Woody Allen. Alguém mais viu uma relação desse tipo?
César Nogueira