por Gabriel Oliveira
Em uma cena fundamental de Moulin Rouge, o Argentino Narcoléptico, ao notar a aflição de Christian, ciente de que Satine está na torre com o Duque, o adverte sobre a tragédia que cerca o amor impossível e, assim, lhe apresenta ao tango: “Nunca se apaixone por uma mulher que se vende. Sempre acaba mal! (...) Temos uma dança nos bordéis de Buenos Aires. Conta a história de uma prostituta e um homem que se apaixona por ela. Primeiro, há o desejo. Depois... paixão! Então, suspeita. Ciúmes! Raiva! Traição! No amor pela melhor oferta, não há confiança. Sem confiança, não há amor! O ciúme! Sim, o ciúme... vai levá-lo à loucura!”
O tango se confunde, então, com a história de amor contada em Moulin Rouge: Amor em Vermelho, do diretor australiano Baz Luhrmann, responsável por Romeu e Julieta (aquele com o Leonardo DiCaprio) e pelo recente Austrália. Christian (Ewan McGregor) é um jovem escritor, defensor dos ideais boêmios: Verdade, Beleza, Liberdade e, acima de tudo, Amor. No entanto, embora defenda ardentemente o poder do amor, ele nunca se apaixonou. Pelo menos não até conhecer Satine (Nicole Kidman), a cortesã mais desejada do Moulin Rouge, o bordel situado nos confins de Montmartre, e que reúne gente de todo tipo. O que poderia ser apenas um amor platônico torna-se realidade, mas o casal deve enfrentar o ciúme do Duque de Monroth (Richard Roxburgh), o principal investidor da peça a ser realizada no estabelecimento.
Lendo a sinopse que fiz acima, o enredo pode parecer simplório, e à primeira vista, não haveria nada demais no filme. Mas é aí que reside o grande trunfo de Moulin Rouge: atribuir uma roupagem totalmente nova a uma história já conhecida, sem cair na obviedade – e vale apontar que é curioso que, embora sejamos advertidos logo no início a respeito do fim trágico do romance, acompanhamos toda a trama com envolvimento e ansiedade. Assim, Baz Luhrman constrói magnificamente um cinema de qualidade; um verdadeiro espetáculo. E definir o filme como um espetáculo não é exagero.
Afinal, o longa se inicia com o abrir das cortinas, como se estivéssemos no teatro, enquanto assistimos a um maestro no canto inferior da tela conduzindo efusivamente a música-tema da Fox, e da mesma forma, termina com o fechar das cortinas. É o poder da metalinguagem que cerca o filme todo: temos uma peça, sendo escrita por Christian e encenada por toda a trupe do Moulin Rouge, sobre um pobre tocador de cítara que se apaixona por uma cortesã, objeto de desejo de um terrível marajá. Trata-se de uma clara metáfora do próprio caso de amor de Christian e Satine, acontecendo bem debaixo do nariz do Duque. A peça, por sua vez, está dentro de um livro, escrito ao longo do filme, em que Christian, convencido pela amada, narra a história de amor deles. O livro, dentro de um musical, que, por sua vez, está dentro de todo um espetáculo destinado a emocionar o espectador. O tango serve também como uma referência ao turbilhão de sentimentos que faz mover a história toda. Em um momento da dança, por exemplo, o argentino agarra os braços da moça com força, movimento repetido logo depois pelo Duque, tomado pela raiva. No mais, o filme como um todo pode ser tomado como uma referência ao próprio cinema como forma de entretenimento. Mas esse não é o ponto agora.
Referências, aliás, são a base para a construção de Moulin Rouge. Não é de hoje que se utilizam referências pop no cinema; a filmografia de Quentin Tarantino é prova suficiente disso. No entanto, inserir, por exemplo, o hino grunge Smells Like Teen Spirit, do Nirvana, no ambiente parisiense romântico de 1899, de forma a ter uma função dentro do filme e não ser apenas uma referência gratuita, não é tarefa fácil, mas notoriamente alcançada em Moulin Rouge. Da mesma forma, grande parte da trilha sonora é constituída por trechos de músicas já existentes, ou releituras de algumas canções. É o caso de Roxanne, do The Police, que ganha uma poderosa versão em ritmo de tango; Your Song, de Elton John; Diamonds are a Girl’s Best Friend, imortalizada por Marilyn Monroe, e cruzada nesta versão com a Material Girl de Madonna; e Elephant Love Medley, uma canção que começa com All You Need Is Love, dos Beatles, passa por Pride (In the Name of Love) do U2 e Heroes de David Bowie, e termina com o agudo de I Will Always Love You, de Whitney Houston – tudo isso da maneira mais natural possível. Além de tudo, há também as óbvias referências à ópera e as coreografias muito bem orquestradas, como a da supracitada El Tango de Roxanne, que ajudam a manter o filme com o status de espetáculo, além das alusões ao próprio cinema, como a Lua de Georges Méliès. E o que dizer da aparição surpresa da cantora pop Kylie Minogue, como a Fada Verde do absinto?
O desvario visual em que embarcamos logo no início do filme, aliás, nos dá a sensação de que bebemos o absinto junto com Christian, e estamos tão delirantes quanto ele. Tudo graças a, desde referências cartunescas (como na cena em que se cria, de improviso, o enredo da peça para o Duque), a imagens quase surrealistas, apresentadas com tanta rapidez em cortes rápidos e sucessivos — o processo de montagem de Moulin Rouge não deve ter sido muito tranqüilo para Jill Bicock, parceira cativa de Baz Luhrmann. Além disso, os outros aspectos técnicos do filme também são muito bem realizados, desde o figurino das cortesãs, dos boêmios, dançarinos e outras figuras da noite de Montmartre, até à belíssima direção de arte.
Ainda por cima, o longa revela possuir um elenco primoroso. Nicole Kidman está excelente (e vale dizer, belíssima), encarnando Satine como a dançarina ora frágil, ora sedutora, ciente de sua beleza e talento, e que, embora relutante no início, se encanta pelo amor de Christian. E se havia alguma possibilidade de Ewan McGregor ser ofuscado por ela, isso não acontece. Seu escritor romântico, idealista e inseguro é extremamente comovente, e de quebra, tem uma voz ideal para as canções. Vale lembrar também de Jim Broadbent, como o dono do Moulin Rouge, de olhos e bochechas grandes, responsável pelos melhores toques cômicos da trama (especialmente sua interpretação inusitada de Like a Virgin), e Richard Roxburgh, como o ciumento e cruel Duque de Monroth e sua vozinha aguda, ambos os personagens com um certo toque caricatural.
Há ainda muito a se falar sobre Moulin Rouge, mas o fato é que, sem dúvida alguma, trata-se de um novo clássico. Não só por ser um musical original, que transforma uma história aparentemente simples em um filme poderoso e emocionante, mas também por ter sido o responsável pelo renascimento do gênero, abrindo portas para o surgimento de filmes como Chicago. Sendo assim, é realmente lamentável que tenha sido mais um filme ignorado pelo Oscar, que preferiu premiar Uma Mente Brilhante naquele ano. Apesar de ser odiado por muitos (Haters are gonna hate. Always.), seja por sua montagem rápida ou por ser pretensioso, Moulin Rouge é uma experiência cinematográfica completa, que emociona e fascina, e é lembrado por muito tempo depois do cair das cortinas.
“A coisa mais importante que se pode aprender na vida é amar. E em troca, ser amado.”
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