quinta-feira, 28 de março de 2013

Crítica - O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

Por Caio Pimenta

"Central do Brasil", "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite 1 e 2" eram, sozinhos, os principais filmes brasileiros desde a retomada iniciada em 1995 pela produção nacional. Agora, eles recebem um novo companheiro: o pernambucano "O Som Ao Redor", de Kleber Mendonça Filho.

Sem dúvida, de todos os citados acima, este é o mais difícil e subjetivo. Porém, também, é capaz de atingir e questionar a tão celebrada classe média brasileira. Na tela e no som, somos testemunhas da nossa prisão através de medidas de (in)segurança paralela a uma revolta social tímida e silenciosa, vinda de passado sombrio, enquanto ao redor, a construção civil nos empacota feitos sardinhas em suas paredes e a rotina vai nos matando.

Panorama este que se passa, por acaso, em um bairro de classe média alta de Recife. Poderia se passar em qualquer cidade brasileira: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, João Pessoa, Salvador, Brasília, Belém, Manaus...

Dividida em três partes (“Cães de Guarda”, “Guardas Noturnos” e “Guarda-Costas”), a obra traz a rotina do bairro depois da chegada de uma segurança privada (no popular, as famosas milícias), a qual cobra R$ 20 para fazer a segurança do local. O relacionamento deles com os moradores do local dá tônica do filme e vai revelando como funciona a vida dessas pessoas ‘comuns’.


 
O aspecto mais claro debatido por “O Som Ao Redor” é a questão da segurança e o medo. Não é à toa que o elemento cênico mais visto durante toda a projeção são as grades, presentes desde em frente à porta de casa ao entorno dos condomínios. Também estão ali, com destaque, também as portas eletrônicas, as câmeras de vigilância, as paredes e muros altos que afastam o contato entre as pessoas.

Na verdade, ao adotar estes procedimentos, o filme aborda o quanto as pessoas acabam se tornando  prisioneiras de seu próprio mundo. Temerosas do que esperar do outro e sempre interessados em si próprios, os personagens entram em contato ou dialogam com o próximo sempre em tons secos, em busca de vantagens pessoais, mesmo que fúteis. Por isso, vemos briguinhas pelo tamanho da televisão ou a maneira de como se demitir um porteiro idoso sem que isso traga prejuízos maiores aos condôminos ou ameaças feitas entre os seguranças e o trombadinha mimado ou barganhar um aluguel mais barato por causa de um suicídio. Há um isolamento entre cada personagem que todos parecem viver em seu próprio universo, sem contato entre si.

Como símbolo dessa sociedade individualista e medrosa, temos a expansão da construção civil e o surgimento descontrolado dos arranha-céus. Tomando conta das cidades, os prédios possuem a beleza estética e a segurança desejada por seus moradores, mas são frios, sem vida, sem a memória afetiva dos seus habitantes. Cada um dividido em seu espaço, em sua individualidade, mas sem se relacionar com o seu entorno.

Duas das cenas mais belas do filme representem justamente isso: a primeira quando a jovem garota abre a janela e se depara com o horizonte tomado por prédios, o que indica um pouco do futuro dela; a segunda traz um personagem recordando como era pacata e mais arborizada a rua no passado, transmitindo um aspecto mais inocente e puro ao local.

Somente isso já seria um ótimo contexto, mas Mendonça Filho vai mais a fundo e busca nos abismos socioeconômicos do Brasil as tensões que permeiam aquele bairro recifense e, no contexto geral, todo o país. O começo do longa, por exemplo, apresenta fotos de um engenho do começo do século XX, com negros vivendo e trabalhando no local. Utilizando simbolismos sutis, o cineasta pernambucano expõe como as diferenças continuam até hoje, mesmo sem a virulência de antigamente.

Ou você acha que o belo plano sequência inicial com as empregas domésticas, quase todas negras, colocadas ao fundo da quadra esportiva, quase reclusas em seu mísero canto, cuidando das ricas crianças brancas é gratuito? Ou a família do dono do antigo engenho ter somente empregadas negras que os servem diariamente? Ou o momento em que o filho da empregada levanta imediatamente do sofá quando o patrão chega, como se já esperasse algum tipo de reprimenda? Ou a dona de casa negra passar o dia inteiro cuidando dos filhos, vivendo em tédio e sob efeito de drogas, enquanto o marido sai para trabalhar?

A tensão social gerada por estes fatos é crescente na trama, assim como o som ao redor dos personagens, sempre posicionado fora da tela, mas, inquieto e persistente, como se avisando que há algo errado. Como, por exemplo, o latido infernal do cachorro. Às vezes, temos o desafogo dessas raivas e injustiças, como na cena de sexo feita na cama dos patrões. Outras tantas é apenas em sonhos e pensamentos inquietos, exemplificado no banho de sangue na cachoeira ou invasão da rua de classe média por jovens negros saídos das favelas/engenhos.

É provável que uma boa parte do público assista "O Som Ao Redor" e não consiga enxergar metade disso posto nesta crítica. Sim, é possível que já tenham se acostumado com estes fatos no dia a dia e encarem tal realidade como normal e nada inquietante. Acreditam ser necessidade dos tempos atuais tais medidas protetivas e que o contexto da trama não pode ser resolvido ou modificado. A maioria, infelizmente, deve somente achar chato mesmo.

Porém, grandes filmes, como este fruto do cinema pernambucano, são capazes disso: encarar uma realidade e examiná-la. Goste-se ou não do resultado,  "O Som Ao Redor" é daquelas obras-primas do cinema necessárias, pois traz o olhar de um artista talentoso sobre a nossa sociedade. As inquestações, angústias, dúvidas de sujeitos como Kleber Mendonça Filho, expostas com tamanha propriedade em uma narrativa capaz de prender o espectador e oferecer tantas qualidades narrativas e técnicas, aguçam debates e discussões importantes para o crescimento cultural/intelectual das pessoas.

E esse é um dos papéis do cinema. E que bom ser do Brasil uma obra tão importante como "O Som Ao Redor".

NOTA: 9,0

PS: Manaus ignorou "O Som Ao Redor".

Durante uma semana em cartaz no Playarte, o filme teve público médio estimado em três a cinco pessoas por sessão.

Manaus merece o cenário cultural que possui e disso estou cansado.