sexta-feira, 5 de março de 2010

Oscar 2010 - Um Homem Sério

No Livro de Jó, no Antigo Testamento, há um questionamento: "Será que Deus é sádico?". Me abstenho dessa discussão. Mas posso garantir que os irmãos Ethan e Joel Coen o são e, com a mesma intensidade, nos fazem rir e pensar enquanto lançam desgraças nas vidas de suas crias.

O escolhido do momento para sofrer é o professor de Física Larry Gopnik.


Em Um Homem Sério eles adaptam essa passagem bíblica, onde o próspero Jó cai em ruína e, assim, tem provada a sua fé em Deus, para os anos 60 na comunidade judaica de Minnesota, onde Bob Dylan e os próprios Coen nasceram e cresceram. O texto bíblico tem um happy ending; Jó vence o seu desafio e aprende uma lição depois da sua jornada heroica. No seu mais recente filme, os ganhadores do Oscar 2008 com "Onde Os Fracos Não Tem Vez" oportunamente se esquecem dessa moral e ficam só com a desgraça mesmo. E isso é ótimo.

Larry passa por um momento difícil e reage a ele com a mais completa impotência. Faz um exame no estômago que indica uma doença, talvez úlcera, numa plausível referência a Jó. Na universidade tem que aturar um estudante coreano querendo suborná-lo. Em casa, a sua esposa quer separação e mantém abertamente um caso com o amante. Fora isso, tem de aturar a excentricidade do irmão que se mudou para o seu lar, os golpes dos filhos e a rispidez dos vizinhos. As desgraças chegam a Larry sem deixá-lo respirar, muito menos lhe dando tempo para, com a sua lógica matemática, refletir sobre as causas e consequências delas. Nem a sabedoria dos rabinos, isso quando eles se dispõem a ouvi-lo, lhe indica caminhos.

Seria coerente afirmar que não há um objetivo no roteiro do filme. Larry, interpretado por Michael Stuhlbarg, aceita passivamente todas as coisas ruins, e só. E o bar mitzvah do seu filho, onde os Coen nos enganam, fazendo-nos supor que aí seria o clímax da história, é apenas um momento para ele pensar que os reveses lhe esqueceram por hora, o que burlescamente se mostra uma inverdade.


Ao contrário do cinemão que nos acostumamos a ver e a apreciar, e mais próximo do que acontece na vida, Um Homem Sério mais lança perguntas do que propõe respostas, abdica dos finais moralistas, ignora a noção de causalidade e, dependendo do ponto de vista, pode ser considerado ou um drama ou uma comédia de ironia ímpar. Ironia essa vinda da tradição judaica, onde o riso esconde sabedoria e ceticismo. Os Coen, nesse ponto, se assemelham menos a Woody Allen, que tira as suas piadas mais dos diálogos, que - meus amigos, mais uma vez, me desculpem pelo proselitismo - Franz Kafka, onde o absurdo e a autopiada dão o tom.

Falando em judaísmo, as referências frequentes a esta cultura pouco dificultam o entendimento dos conflitos de Larry. Claro que facilita saber o que faz um rabino, mas o significado de vários termos é, pelo menos, intuído graças ao contexto em que aparecem.

Um Homem Sério concorre nas categorias Melhor Filme e Melhor Roteiro Original do Oscar deste ano. Acredito que as chances dele ganhar qualquer prêmio são baixas, devido ao peso político (Guerra ao Terror) e econômico (Avatar) da concorrência. Isso, claro, tira nada do mérito da história e da sua capacidade de entreter - expandida contanto que você pense bastante depois de sair do cinema.


A título de curiosidade, Simon Helberg, o Howard de The Big Bang Theory, interpreta o rabino júnior Scott Ginzler.

Nota: 8

César Nogueira - produtor de SET UFAM

5 comentários:

  1. Como escrevi, não vi todos os indicados, mas dentre os que vi, a maioria, este é o melhor. Acho que a ideia do filme vai bem além dos mitos religiosos - há pequenos detalhes que podiam fazer diferença, como por exemplo o momento no telefone em que o protagonista recusa receber o disco de Abraxas Santana. A palavra "abraxas" significa deus. É ele negando deus. Acho que o filme todo se resume àquela simples frase que o coreano fala para ele:

    "Aceite o mistério."

    A partir do momento em que todas as religiões tentam dar conta do tal mistério, nada melhor do que usar uma delas como argumento.

    Abs!

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigado pelo comentário.

    Poxa, o significado da palavra abraxas me fez enxergar outros e mais outros significados no filme.

    Ontem na MTV o Borbs do Judão falou algo interessante: "Os filmes dos Coen ou você ama, ou você odeia, ou você não entende nada".

    César Nogueira

    ResponderExcluir
  3. Simplesmente um dos melhores do ano e, sem dúvida, o mais engraçado. A amior injustiça do Oscar esse ano foi não ter dado uma indicação a Michael Stuhlbarg. O timing cômico perfeito do ator aliado à sua capacidade de ilustar o crescente desespero e inevitável colapso nervoso do personagem, garantem a melhor atuação masculina do ano até agora. Ainda não pude conferir Colin Firth e Jeff Bridges (os dois próvaveis ganhadores do Oscar de Melhor Ator), mas Michael está infinitamente melhor do que George Clooney, Morgan Freeman e Jeremy Renner, os quais, apesar de competentes, não mereciam a indicação que receberam, na minha opinião.

    ResponderExcluir
  4. Obrigado pelo comentário, André.

    Também gostei muito da atuação de Stuhlbarg. Associei o trabalho dele com a figura do judeu neurótico, lapidado pelo Woody Allen. Alguém mais viu uma relação desse tipo?

    César Nogueira

    ResponderExcluir